9 de jul. de 2011

O Teatro nas ruas e Taguatinga no palco | crônica do poeta medieval japonês Mayzum Kitema publicada na edição nº 1, Jun/2011.

Neste 5 de junho de 2011, Taguatinga completou 53 anos. Nossa homenagem foi a publicação desta crônica narrando a turnê do Grupo Retalhos nas favelas da cidade. Além de se apresentar, o grupo pesquisava o cotidiano dos moradores para preparar um novo espetáculo que teria Taguatinga como tema. Nem tudo narrado aqui é verdade, mas vejam no que deu essa empreitada.

Foto: Manuel Pimentel 

Chegamos à Boca da Mata por volta de oito horas de um sábado e, às nove, com todos os atores caracterizados, o grupo saiu pelos becos da vila cantando, dançando, brincando com as crianças e  distribuindo panfletos de porta em porta.
Às nove e meia, estávamos de novo numa área central e iniciamos a apresentação. Como não havia palco ou qualquer outro meio de separar elenco de público, as crianças se misturavam com os atores, interrogando-os e chamando-os de palhaços. Inicialmente ficamos inseguros e tentamos ignorá-las, mas elas ficaram furiosas e algumas falavam palavrões. Outras tantas choravam desesperadamente. Tivemos que pegar várias delas no colo e sair batendo de porta em porta à procura de seus pais. Na impossibilidade de continuarmos o espetáculo, tentamos contornar a situação prometendo voltar na manhã do dia seguinte. Cumprimos nosso trato no domingo pela manhã. Mas não fizemos divulgação. Com isso conseguimos um público bem mais calmo, mas, quando entrávamos em cena maquiados, não faltava quem gritasse: “Alá o Cacareco!” Nesse dia, demonstramos grande habilidade em apresentar espetáculo de adultos para crianças, pulando do texto para improvisos e voltando ao texto com uma naturalidade que parecia ser tudo um improviso só. Durante uma cena em que havia derrubada dos barracos, as crianças invadiram o espaço cênico sem o menor respeito com nossa arte e quebraram o pau em cima dos atores que representavam o fiscal e os policiais. Até os adultos nos agrediram. Outras crianças choravam e a confusão só terminou quando nossa boneca de pano teve a luz de pegar o megafone e cantar uma música da igreja universal pela paz. Aí, eles se ajoelharam e oraram pedindo desculpas ao Pai. Engraçado, batem na gente e o Pai é que tem que perdoar! Ainda pensamos em retomar o espetáculo, mas dois atores se recusaram. Então nosso diretor foi à frente e explicou que não estávamos preparados para aquele espaço, por isso não seria possível continuar. Percebendo a decepção do público prometeu que voltaríamos em breve com uma recreação “que atingisse os anseios da classe infantil”. Não sei se o entenderam, mas tivemos que juntar as trouxas debaixo de vaias e buchas de laranja. Felizmente ninguém foi ferido seriamente. Aprendemos o que não fazer.

Fomos à Vila Areal

Na semana seguinte, a apresentação era na Vila Areal. Com justíssima relutância, decidimos tentar continuar a turnê. Afinal era outra vila e outras crianças. Alguns atores resolveram não usar maquiagem de palhaços, pois eram os mais provocados pelas crianças. Quase todos queriam fazer o papel do motoqueiro pra poder usar capacete. Na chegada procuramos ser discretos. A associação dos moradores se encarregou de todos os preparativos necessários. Tudo parecia calmo até que aparecemos e, do nada, surgia a criançada pulando, querendo brincar de roda, de pique etc. Uns gritavam: “Viva o Cacareco!”, o coro: “Viva!,”. “Viva o outro Cacareco!”, Viva!”. Mesmo assim, a gente foi levando. As crianças participavam de todas as cenas e cada vez nos relacionávamos melhor. Chegamos a tomar gosto pelo andamento, mas, lá pelas tantas, alguns atores, que tinham passado a infância em favelas como aquela, começaram a sentir uma espécie de nostalgia e desabar no choro. Então, saíam de cena e não voltavam. Tivemos que parar novamente.

Ainda tentamos naVila Maestro

Na Vila Maestro, estávamos mais seguros do que não podíamos fazer. Discutimos bastante, durante a semana, adaptamos a montagem para a linguagem do público. O Apoio local foi mais bem estruturado. Os moradores tinham improvisado bastidores estendendo lençóis em varais. Então, tivemos até coxias e camarins. O público estava sentado em bancos e caixotes trazidos de casa e dispostos em semicírculos diante
dos lençóis. Ao começarmos, ouvíamos os gritos de excitação espremidos nas gargantas de todas aquelas crianças. Não deu três minutos e já tinha menino rolando pelo chão, subindo nos módulos e pulando. Uma criança foi tirar outra que tinha invadido o espaço cênico, mas levou um safanão e saiu chorando. Outro veio em seu socorro e agrediu o agressor. O pau comeu. Algumas crianças pegavam nossas perucas, punham na cabeça e imitavam nossos personagens. Todos caíam na gargalhada. Os figurinos foram rasgados. Os pais gritavam e arrancavam os cabelos sem conseguir nenhum controle sobre os filhos. Quando nos deram uma trégua, distribuímos papéis e tintas e iniciamos uma dinâmica de pintura. Esse povo pintou e bordou em nossas caras, nas deles mesmos e dos cachorros desavisados. Os lençóis, ai meu Deus! Também pintaram cabaças, carrinhos de latas de óleo, pneus, bonecas de pano, caixotes. Do fundo do quintal ou do mato, surgiam mais crianças trazendo objetos pessoais, desenterrando de nossa memória os momentos mais longínquos em que inventávamos nossos brinquedos. No auge da desordem, surgia uma harmonia nova. Fomos arrebatados por nossa verdadeira identidade de criança faminta e começamos a criar um novo espetáculo. O Grupo Retalhos acabava de romper mais uma casca de seu ovo. Semanas depois, iniciou a criação coletiva de um espetáculo sobre a Taguatinga, que estreou ainda capenga em 1983 e representou o DF no Festival Brasileiro de Teatro Amador de 84. Só depois do festival o espetáculo se acertou e acabou ficando entre os melhores do ano. Estamos falando de Uma Satélite Fora de Órbita, dirigido por Futuka Ferreira, depois, por Ivaldo Melo e, por fim, Chico Simões.

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